Justiça italiana condena geocientistas

Um erro histórico de um tribunal italiano

 

Eduardo Salamuni (*)

 

A condenação de seis sismólogos italianos, além de um representante da defesa civil nacional, por não terem previsto o terremoto devastador de março de 2009 que ocorreu em L’Aquila no centro da Itália é uma notícia que abalou a ciência, em especialmente as geociências. Não fosse o inusitado da condenação, talvez o episódio caísse na vasta lista das tragédias naturais inevitáveis.

O espanto da condenação se dá não só porque é injusta, mas também porque tem por consequência a quebra de um paradigma construído duramente pelas ciências da natureza, que é considerar a probabilidade – ou até mesmo a incerteza – como parte da explicação científica sobre um fenômeno natural qualquer.

Para a corte italiana, os geocientistas precisariam ter alertado a população de L’Aquila que haveria um terremoto com potência destrutiva suficiente para danificar boa parte das construções locais. Certamente promotores, jurados e juiz questionaram os nossos colegas italianos do por quê não previram o momento em que isto ocorreria!

Como geocientista, só tenho a lamentar a absurda decisão tomada. Caso essa tese prevaleça como jurisprudência toda a ciência estará em cheque, bem como quem a utiliza em seu cotidiano profissional. Cientistas estarão prestes a perder a liberdade, sob o jugo de uma cega espada que sustenta uma falsa ideia de justiça.

Os exemplos são incontáveis e vale apenas citar alguns: poderia o meteorologista ser punido por não alertar a comunidade agrária de Santa Catarina, sobre o risco de perdas da pecuária catarinense decorrentes da anômala onda de frio que nos atingiu nos primeiros dias de primavera?

Poderia um médico ser punido pela morte por infarto de um paciente cujo exame ergométrico foi bem sucedido no dia anterior?

Poderiam os engenheiros da concessionária de estrada serem punidos porque chuvas torrenciais imprevisíveis derrubaram uma ponte da BR-277 no início de 2011?

Poderiam os urbanistas japoneses da cidade de Kobe sofrerem sanções porque fizeram obras para suportar terremotos -acima da intensidade média local – e o terremoto que ocorreu foi na escala 7,3 (escala Richter) provocando destruição acima do esperado?

Tendo como base as ideias do Prof. Newton da Costa, matemático e filósofo, que já lecionou na Universidade Federal do Paraná, é possível compreender que as ciências, principalmente as naturais, são formadas de “quase-verdades”, e não de verdades absolutas. Sua Teoria da Para consistência, aliás, nos ensina que mesmo as ciências exatas podem possuir alguma flexibilidade a depender de condições físico-químicas extremas.

Por mais que se tente buscar uma razão lógica, não há como defender a decisão da corte italiana. Quem faz a ciência ou a usa no seu dia-a-dia sabe perfeitamente que seu trabalho está fortemente condicionado a padrões estatísticos e tendências, havendo margens de erro até consideráveis em seus pareceres. Isto ocorre principalmente nas Ciências da Terra, cuja inexatidão está diretamente ligada a parâmetros desconhecidos pelo geocientista. Se assim não fosse, o Japão teria construído suas maiores barreiras de contenção de tsunamis não na sua região oeste, mas sim nordeste, onde ocorreu o desastre de 2010 – ou então meus companheiros de profissão já teriam seu próprio poço de petróleo ou seu veio mineralizado em ouro!

Temo que a decisão dos magistrados italianos tenham levado os profissionais que trabalham com riscos naturais -geocientistas e engenheiros, por exemplo – a adotar posição de autodefesa. Doravante não se arriscarão a fornecer qualquer novo parecer a respeito de riscos naturais que poderiam prejudicar comunidades inteiras. Se isto acontecer será um grande retrocesso; voltaremos a um período quando os fenômenos naturais, apesar de compreendidos pelos estudiosos, não davam subsídio à proteção da sociedade. Talvez nos entreguemos de vez à armadilha das ideias transcendentais, muito a gosto do misticismo e da pseudociência, como já alertava Carl Sagan. Levanto a hipótese do tribunal italiano ter caído na armadilha de promotores, que insensatamente deram vazão à sede de punição de pessoas compreensivelmente abaladas pela perda de entes queridos ou de seu patrimônio.

A corte errou porque desconsiderou a realidade da pouca previsibilidade dos fenômenos naturais. Trilhou o injusto e fácil rumo da punição, o qual tanto as sociedades ocidentais quanto orientais têm se empenhado em seguir. É possível que tenha se embasado na perplexidade que nos acomete frente à morte, rejeitando de forma enfática o espírito racional cravado na alma e na cultura europeia desde o iluminismo!.

(*) Geólogo – PhD Professor da UFPR

Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo – Curitiba/PR – 31/10/2012